domingo, 18 de março de 2007

Coisas perturbadoras I

Quando li sobre o atentado de 11 de março, em Madrid, me surgiu uma imagem perturbadora, é algo mais ou menos assim:



Beth mastigava um pedaço de bolacha rica em fibras, mas com gosto de isopor de canela, sorvia sem cuidado – fazendo barulhinho – uma caixinha de água de coco, enquanto repassava a pauta da primeira entrevista do dia: um apático grupo de velhinhos que se reunia pra fazer tai chi as 8 horas da manhã. Entraria ao vivo no segundo período de um programa matinal assistido por pessoas sonolentas no café da manhã.

A Combi da produção reduzia num semáforo, quase em frente a estação do trem, quando aconteceu a explosão. Tão forte que fez as poucas pessoas da rua se encolherem, o motorista soltar um pesado palavrão em catalão e Beth arranhar a ponta do nariz com o canudo.

Beth saiu da combi, sem pensar, correu para a entrada da estação. Não foi seu tino de repórter, foi sua curiosidade natural (e por vezes mórbida) quem a fez correr na direção da qual os outros saiam apressados.

A primeira pessoa a falar foi um homem, totalmente pálido, usando um uniforme que lhe otorgava certo ar de autoridade (mas podia ser tanto um policial, quanto um carteiro). “O trem explodiu. Não vá pra lá.” – para Beth isso foi como um convite formal, agora a jornalista falava mais alto e ela cruzou o portal em direção do embarque.

O embarque era surreal: uma chuva de pedacinhos de papel, reboco de parede, lascas de tinta e demais partículas se misturando com a fumaça... silencio de fazer os ouvidos zumbirem em contra-ponto à enorme explosão anterior. A sua frente o que restava de um trem, lembravam costelas retorcidas de uma enorme baleia metálica, montanhas de entulho completavam a disforme paisagem, ora permeada por uma mochila, um pedaço de roupa ou algo que poderia ser um corpo.

Eles estavam lá. Não os reconheceu de imediato, mas estavam... uma mão no meio do entulho, um rosto, vários rostos. Paralisados numa expressão de quem leva uma forte pancada e assim fica – uma surpresa violenta, um susto não concluído.

A mão do câmera em seu ombro a acorda do transe. Era hora de trabalhar, eles tinham um link direto com a emissora, entraria no ar em 30 segundos. – “mas não sei o que está acontecendo.. não sei o que falar..” – não importava, ela só precisava falar algo enquanto as imagens eram transmitidas ao vivo e em primeira mão para os lares de milhares de cidadãos recém despertos, engolindo suas fatias de torrada e suas xícaras de café.

Foi o que fez com muita competência, quase no automático – ela não lembraria depois das palavras que usou. O câmera foi cuidadoso também, registrou as imagens sem mostrar pedaços de corpos ou cenas grotescas. Enquadrou a moça numa grande massa de entulho amorfo. Quando o link fechou cumprimentaram-se: não era todo dia que se está no lugar certo na hora certa. Agora o câmera vai gravar imagens do local para a edição do noticiário da noite e algumas imagens feias, para sua coleção pessoal.

Beth está novamente solitária, no silencio, com a cabeça meio vazia na atmosfera surreal do lugar. Passados não mais de vinte ou trinta segundos da queda do link, algo chama sua atenção, lhe faz voltar pra realidade: uma sacola de papel se arrastando como bicho agonizante - do papel um pequeno celular emerge, tremendo, vibrando, avançando. Ela olha o aparelhinho como quem percebe um inseto enorme e maligno: um celular sem requintes, do mais simples, se esforçando para viver, como ultimo eco de vida do seu dono... então, uma parte de Pour Elise em notas eletrônicas se faz ouvir um pouco mais ao lado, uma mochila desgarrada começa a tocar seqüências de sons de pássaros, acima, da jaqueta de alguém imóvel, nascem toques de telefone antigo, por traz de uma poltrona o mid de uma musica popular: um a um, dezenas de pequenos celulares de diversos formatos, marcas e modelos, começam a tocar numa cacofonia angustiante: vários tipos de sons, varias personalidades – agora mortas – gritando ao mesmo tempo.

Beth fecha os olhos com força, não quer se lembrar que do outro lado de cada celular existe alguém agoniado por uma resposta que não vai receber, não quer perceber que foi ela quem deu a noticia.

Ela fica ali parada, se sentindo pequena. E aos poucos, da mesma forma que começaram, os insistentes sons vão parando... um a um, deixando em seu lugar uma silenciosa agonia.

3 comentários:

Cristine Larissa Clasen - Enfant disse...

Teu link agora está no meu blog. Ele está tão abandonado quanto o teu.
No meu, creio que cansaram de acessar, uma vez que nunca encontram nada de novo, assim, exatamente como na vida real...

L. Maria disse...

Andres,
adorei isso! qdo crescer quero ser que nem vc!
bj
Lauren

Mostrini disse...

ah não!
isso quer dizer que nunca mais vão me convidar pra jogar stop?
ah não! prometo que da próxima vez jogo sério e me comporto.
poxa vida!
Temos que combinar mais bebidas/jogos/pipocas de frango/piscina...
exatamente nesta ordem!
beijos.